Consideramos que o profissional que atua no Sistema Prisional deve atuar no sentido da promoção e do respeito aos direitos humanos, bem como na construção de estratégias de autonomia e participação dos sujeitos atendidos, resgatando a cidadania e a reinserção na sociedade. Compreendemos, assim, que reduzir os índices de criminalidade e responsabilizar-se pelas conseqüências de um sistema social excludente não é tarefa só do psicólogo, mas de todos os trabalhadores que compõem o sistema de justiça criminal.
A Resolução CFP 09/2010 é fruto de um amadurecimento técnico, ético e político dos psicólogos que atuam no sistema prisional brasileiro construído ao longo dos anos, com discussões e decisões coletivas que ganharam visibilidade em vários eventos realizados pelo Sistema Conselhos de Psicologia nos diferentes estados e em nível nacional: nos Congressos Nacionais de Psicologia (CNP) nos anos de 2004, 2007 e 2010, no I Encontro Nacional de Psicólogos do Sistema Prisional, realizado em Brasília, no ano de 2005, pelo CFP em parceria com o DEPEN e no Seminário Nacional sobre o Sistema Prisional em 2008, no Rio de Janeiro quando foi deflagrada a Moção contra o exame criminológico.
Não é possível atuar no sistema prisional sem considerar a eficácia do modelo de privação de liberdade, ou seja, as condições de execução da pena, que são variáveis importantes e que interferem no processo de avaliação. Não é possível concluir o que ocorrerá com aquelas pessoas, considerando apenas as suas características e condições individuais, sem problematizar todo o processo e os elementos oferecidos para a suposta ressocialização ou superação de fatores que o levarão a cometer novos delitos.
Ademais, o Exame Criminológico já foi alvo de sérias críticas inclusive fora da Psicologia, a saber:
– De acordo com o Promotor Público da Execução Penal de Goiânia, Dr. Haroldo Caetano da Silva:
o exame criminológico decorre da doutrina de Lombroso, que acredita na figura do ‘criminoso nato’, legitimando assim a punição do homem não pelo eventual crime praticado, mas pelo que ele é. Corresponde ao Direito Penal ‘do autor’, em contraponto ao sistema constitucional brasileiro, que se baseia na culpabilidade, logo, no Direito Penal ‘do fato’. É inconcebível que o juiz decida sobre a liberdade do homem a partir do exame criminológico.
– A Coordenadora da Comissão de Execução do Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE), Dra. Fabíola M. Pacheco, aponta que:
desde 2003, ou seja, há 07 anos, o artigo 112 da LEP estabelece como únicas condições para a aquisição do direito público e subjetivo ao livramento condicional o cumprimento do lapso temporal determinado no Código Penal e o bom comportamento carcerário, este comprovado pela direção da Unidade Prisional.
Dessa forma, o Exame Criminológico, segundo Dra. Fabíola, “não é apto para comprovar nenhum dos requisitos legais, não há justificativa jurídica alguma para fundamentar a negação de um direito com base nele. Pensar o contrário é admitir a possibilidade de criação de requisitos extralegais para restringir a liberdade”.
– O eminente jurista Salo de Carvalho afirma que:
A opção legislativa é clara, e eventual entrave ao alcance dos direitos em face de perícias desfavoráveis parece ser direta ofensa à legalidade penal, constituindo cerceamento de direito. Se o requisito subjetivo existia e a reforma penitenciária optou por sua remoção, nítido o fato de que havia falhas, distorções e/ou impossibilidades técnicas da realização da prova pericial ou parecer técnico, não cabendo, portanto, ao julgador, ao órgão acusador, ou a qualquer outro sujeito da execução revificar o antigo modelo. Do contrário, estar-se-á empiricamente deferindo ultratividade à lei penal mais gravosa (determinação de quantidade superior de requisitos para o gozo dos direitos), ofendendo a lógica formal e material do princípio da legalidade penal. (Crítica à execução penal, 2ª edição, coordenação de Salo de Carvalho, Lúmen Júris, 2007, p. 168).
– A defensora pública Dra. Fernanda Trajano de Cristo, em matéria publicada em 28/07/2010 no site Zero Hora[1], comenta que “em muito boa hora o Conselho Federal de Psicologia posicionou-se acerca de um tema há muito discutido entre os operadores do Direito, especialmente os atuantes em execução penal, qual seja, o verdadeiro papel do psicólogo no sistema prisional”. Ainda afirma que:
Por óbvio que, se a Lei determina o preenchimento de dois requisitos para a obtenção do direito a progressão de regime, que são o cumprimento de pelo menos um sexto do total da pena e ostentar o preso bom comportamento carcerário comprovado pelo diretor do estabelecimento prisional, qualquer requisito exigido fora desse parâmetro legal fere frontalmente a Lei. É o caso da utilização dos laudos psicossociais e do exame criminológico que, muito embora respaldados pela recente Súmula 439 do STJ de 13/05/2010 em que “admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada” acaba por incluir requisito que o legislador, acertadamente, expurgou com as modificações trazidas pela Lei 10.792/2003.
O curioso é que o Conselho Federal de Psicologia parece estar de acordo com as mudanças operadas pelo legislador como forma de melhoria do sistema carcerário e melhor aproveitamento de seus profissionais dentro dos estabelecimentos prisionais, enquanto a grande maioria dos profissionais do Direito continuam resistindo a tais mudanças.
Nesse sentido, compreendemos que é necessário o pleno cumprimento dos dispositivos legais contidos na Lei de Execução Penal (LEP) no sentido de ações de reintegração social no acompanhamento da pena, bem como a construção de políticas públicas no campo criminal que objetivem o tratamento dos apenados, a retomada de laços sociais através de instituições comprometidas com a promoção de saúde e bem estar, que lhe dêem apoio, suporte e acompanhamento psicossocial, pois, como não bastasse a experiência desumanizadora e traumática de cumprimento da pena, ao egresso penitenciário é dado apenas o ônus da sua liberdade, raros são os projetos e as políticas públicas no Brasil que se preocupam com as possibilidades de retomada da vida em liberdade.
É interessante refletir: por que um dispositivo extraordinário e infralegal é colocado como “A ATRIBUIÇÃO FUNDAMENTAL DO PSICÓLOGO NO SISTEMA PRISIONAL”? Há muitos fatores envolvidos nessa realidade. Um deles é que, por muitos anos, essa foi realmente a prática hegemônica da Psicologia no sistema penal (situação que veio a se modificar, principalmente, após a extinção do Exame Criminológico para progressão de pena na redação da LEP de 2003); outro elemento é a compreensão ainda arraigada nos profissionais do sistema penal e na sociedade, das teorias lombrosianas do “criminoso nato” e a utilização do recurso do encarceramento como forma de responder às questões que se originam, fundamentalmente, na desassistência social a que muitos estão submetidos.
Dessa forma, a Resolução CFP 09/2010 nada mais faz do que, ao iluminar-se com a LEP, colocar o papel do psicólogo no devido cumprimento da LEI: realizar individualização e acompanhamento da pena. Reside aqui o verdadeiro objetivo que deveria ser buscado por todos os profissionais da Execução Penal (e pela sociedade em geral): PELO CUMPRIMENTO DA LEP, PELO ACOMPANHAMENTO DA PENA, PELA REINTEGRAÇÃO SOCIAL!!!
Bem, sabemos que não é o que ocorre… e, pelo teor das manifestações contrárias que temos tido conhecimento, sabemos que o que está por trás de todo esse alvoroço em relação à Resolução CFP 09/2010 é a luta por concepção de Justiça, concepção de Profissão e pelo posicionamento que a Psicologia tem em relação ao sistema prisional como um todo.
Ora, A RESOLUÇÃO NÃO PREGA O FIM DO TRABALHO DO PSICÓLOGO NO SISTEMA PENAL, ao contrário, o recoloca exatamente no lugar que mais podemos contribuir na execução da pena: visando ações de reintegração social!
Nesse sentido, o exemplo do caso de Luiziania foi utilizado para demonstrar isso: se o acompanhamento da pena fosse efetivo, se houvesse realmente a construção de laços com redes de atenção extra-muros, acreditamos que a história poderia ser diferente… OU seja, não é um Exame Criminológico que garante que presos viverão bem em sociedade (seja ele feito por psicólogo, psiquiatra, assistente social, etc), mas sim o devido ACOMPANHAMENTO DA PENA é que pode trazer algumas garantias disso. Isso é tão óbvio, mas tão obscurecido pelas reportagens e mensagens tendenciosas!
E esse “outro lugar” da Psicologia no sistema prisional (para além do malfadado Exame Criminológico), tem sido construído coletivamente pela categoria (na realização de projetos de reintegração, de atenção psicossocial, entre outros) e com a categoria por meio de diferentes ações do Sistema Conselhos de Psicologia: eventos, encontros, reuniões, implicação de psicólogos na gestão do sistema conselhos, entre outras. Alcançamos um patamar que nos autoriza a dizer que essa é sim uma construção coletiva e que A PSICOLOGIA ESCOLHE UM LUGAR DIFERENTE DAQUELE QUE O SISTEMA PENAL QUER QUE ELA SE COLOQUE; A PSICOLOGIA ESCOLHE EFETIVAR A LEP, A PSICOLOGIA ESCOLHE REALIZAR O ACOMPANHAMENTO DA PENA, DE MANEIRA COMPROMISSADA E TENDO COMO PRESSUPOSTOS A CF, OS DIREITOS HUMANOS, AS LEGISLAÇÕES EM VIGOR NESSE PAÍS (LEP, SUS, REFORMA PSIQUIÁTRICA), O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL E, AGORA, A RESOLUÇÃO CFP 09/2010.
Por fim, consideramos que as divergências oriundas do desdobramento da Resolução CFP 09/2010 devem ser os desencadeadores de uma discussão ampla, séria, sem decisões emergenciais tomadas de forma oportunista no calor do clamor popular, colocando em questão todas as condições que colaboram na prática de um crime e propondo soluções humanas e menos vingativas, num movimento que busque reforçar o Estado Democrático de Direito no país.
[1] http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2985762.xml&template=3898.dwt&edition=15180§ion=1012